Madame velhinha
-A senhora não quer sentar-se?
A idosa respondeu com a voz tremida, mas firme.
-Não, nao vou demorar menina, mas aceito um calmante.
-Ah sim, claro, deixe eu ver, disse a moça mexendo numa gaveta. Aqui está.
A velha tomou a caixinha e guardou-a no bolso do vestido.
-Obrigada.
-Mas a senhora não iria tomar?
-Não, não é para mim, é para o Bob.
-Bob? Quis saber a psicóloga
-É , meu cachorro está com raiva.
E a moça tentou explicar:
-Mas a senhora precisa levá-lo ao veterinário porque eles têm licença para medicá-lo.
-Eu acho que é você quem não tem licença para sair medicando seus pacientes. Eu que não tomaria isso.
-Mas eu só, deixa pra lá... Então a senhora quer me dizer porque está aqui?
-Que pergunta mais óbvia de se fazer. Eu estou aqui porque, porque, me esqueci...
-Esqueceu?
- É, mas preciso de um tempo para pensar, sim?
E a moça assentiu com a cabeça.
TICTACTICTAC-Dez minutos se passaram
-Há, já sei-a velhinha cortou o silêncio.
-Há! exclamou a psicóloga, como se acordasse.
-Eu estou aqui porque você é uma psicóloga.
-Sim, exatamente e mais o que?
-Há se você é mais que isso eu não sei né ?
-Não, eu quero dizer:fale sobre sua vida.
-Há, mas que garota fofoqueira. Sua mãe não te ensinou que não deveria ficar se metendo na vida das pessoas não, é?
-Hei, mas... deixa pra lá.
-É isso mesmo, está errada.
-Olha só -dessa vez a moça estava começando a ficar irritada-sei que a senhora...
-Senhora? Interrompeu a velhinha-porque fica me chamando de senhora? -Acha que sou muito velha?
- Não é isso que quis dizer, senhora.-A psicóloga abandonou o tom formal.
-Está vendo? Me chamou de velha de novo.
-Eu não a chamei de... -e foi interrompida pela mulher madura.
-Espere, me lembrei porque estou aqui.
-Ah é? Então por quê? A moça disse olhando para cima impaciente.
-Porque sou uma vivida e todos os vividos precisam de psicólogo- É o que a TV falou hoje.
-Sim, isso mesmo...
E a idosa, como se não escutasse a interrupção, olhou pela janela e sentou-se pondo-se a chorar:
-Mas o tempo está passando tão rápido e dentro de mim sou tão jovem. Ainda me lembro quando o Alfredo me pediu em casamento. Ele colocou nossa aliança dentro de uma banana. Eu comi a banana e engoli a aliança. Depois tive de vomitá-la. Foi tão romântico. Ah Frefre.-disse assoando alto o nariz enquanto chorava mais alto.
A psicóloga tentou confortá-la, mas percebeu que os olhos da senhora estavam secos e sua voz normal, como se tivesse encenado.
E a idosa, notando que a outra a olhava desconfiada disse:
- Preciso de um copo de água com sal.
-Mas não seria água com açúcar?
-Não, eu tenho diabetes.
-Mas é que... está bem, concordou a moça sem querer mais contrariá-la.
E saiu da sala para buscar o pedido inusitado. Até foi um alivio sair um pouco-pensou.
Na volta, ao abrir a porta, tropeçou na bengala que agora estava na entrada da sala, onde segundo a velhinha, havia escorregado de suas mãos.
E o copo caiu das mãos da psicóloga derramando um pouco de água sobre ela e espatifou-se ao chão.
Foi então que esqueceu-se de sua ética profissional. Estava prestes a explodir com aquela senhora e pedi-la que fosse ao psiquiatra.
-Olha, olha... começou bem nervosa, prostrada, tentando juntar os cacos de vidro.
Mas, ao olhar para a mulher madura, conteve-se. Ela parecia tão indefesa agora e vinha em sua direção, sem ajuda da bengala, apoiando-se aos móveis.
E mexendo na bolsa tirou a caixinha que a moça lhe dera.
-Tome, acho que está precisando mais que o Bob agora.
E a psicóloga aceitando o auxílio, tomou o comprimido engolindo-o a seco.
Foi ai que o relógio do consultório tocou sinalizando o fim da consulta.
No dia seguinte, a psicóloga ligou para a velhinha e pediu que voltasse a seu consultório.
Eu queria pedir um favor a senhora ou a você, como preferir ser chamada. Disse a psicóloga à velha que atendeu a seu chamado.
-Agora que perguntou, prefiro ser tratada como madame. Disse a senhora pomposa.
- Está bem, madame. Tenho um pedido para fazê-la.
-Hum, assim está bem melhor. Se já entende como se dirigir a uma pessoa refinada está subindo no meu conceito. Elogiou-a a idosa.
Foi daí que percebeu que tinha o caminho livre para fazer o pedido e introduziu:
-É que eu sempre tive dificuldades em controlar minha raiva. Com a madame, ontem fui testada até o limite, mas consegui controlar os sentimentos ruins dando vazão aos bons quando percebi que preocupou-se comigo dando-me o comprimido que era do Bob.
-Sim, incentivou-a a velha.
-Sabe, madame, nesses dez anos que eu clinico sempre me vi no controle dos meus pacientes e de todos a minha volta. Mas a madame possui um misto de generosidade e ingenuidade raras no mundo de hoje e eu quero ter essas qualidades também.
-Sim, disse a velha mais uma vez.
-A madame me parece muito segura de ser quem é, por isso acredito que nem todos os velhinhos precisam de psicólogo. Suponho que a TV tenha errado.
Mas a velha a injetou um olhar de censura e ela corrigiu:
-Quero dizer, nem todos os mais vividos precisam de acompanhamento psicológico. Era meu trabalho ajudá-la, mas foi a madame que me ajudou.
- Ah, mocinha, sinto-me lisonjeada. Obrigada, mas em que posso ajudar? Quis saber a idosa muito complacente.
E a moça percebendo que já era hora, foi direto ao ponto:
-Quer ser minha terapeuta?
-Mas a mais velha olhando bem em seus olhos por alguns segundos como se não acreditasse e com um leve sorriso em seus lábios, respondeu com a maturidade de sua idade:
-Aceito com uma condição.
-Qual?
-Que você concorde em eu trazer o Bob comigo.
Descontraida a moça disse:
-Trazer? Não, não será necessário porque como a madame que é a terapeuta, as consultas podem ser na sua casa.
E a velhinha gostando da ideia insistiu sobre o Bob.
Então a moça respondeu:
-Vai ser ótimo o Bob presente. Assim poderemos aprender a controlar a nossa raiva juntos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário